sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A felicidade se ensina? ou Felicidade crítica contra racionalismo instrumental. A necessidade de um critério eudemônico de combate no século XXI

No âmbito da vida acadêmica contemporânea, é um lugar comum desqualificar a felicidade e negar que ela possa ser um objeto consistente de indagações filosóficas: destarte, de dois séculos para cá, o acesso à idade adulta da razão em sua dimensão crítica teria correspondido a uma empreitada inexorável e definitiva de desencantamento maciço da reflexão especulativa, deixando a felicidade cair na rede dos tópicos "leigos", fadados à falta de seriedade conceitual e à ditadura das opiniões individuais. Não é somente que, em nossas sociedades liberais, a felicidade de cada um sendo da conta de cada um, qualquer questionamento de tal aspecto privado e privativo tenha se tornado, de fato, suspeito de autoritarismo reacionário; é também, e talvez sobretudo, que a filosofia atual desconfia que nada haja de importante e/ou de objetivo a ser articulado no que tange à felicidade, salvo para quem quiser correr o risco de abrir a Caixa de "Pandoxa", i.e., o risco de deixar a infinidade das opiniões particulares invadir o debate público e tomar conta do discurso "sério" (entender: conceitual) sobre a vida em comum, o que, afinal, desembocaria em uma profusão anárquica de "etiquetas" (= éticas pequenas) contraditoriamente normativas.

Tamanha relutância filosófica em refletir a felicidade, e em outorgar a esta qualquer papel além de meramente individual, ou seja, pré-filosófico, seria, portanto, algum tipo de prova de seriedade teórica, o preço a ser pago para assumir a postura admissível que cabe a uma razão adulta, ao evitar qualquer possibilidade de contaminação pelo entusiasmo e a superstição, eternos adversários da modernidade. Vale observar que a consequência deste quietismo acadêmico em relação à felicidade tem sido a captura deste tema por filosofias populistas e/ou demagógicas, geralmente forjadas para fins bem lucrativos: manuais de autoajuda, seitas, gurus, etc. Daí que se possa temer que, a persistirem em abrir mão da reflexão sobre a felicidade, os filósofos, longe de desfrutarem a conclusão positiva da luta outrora vitoriosa contra o obscurantismo clássico, irão apenas endossar sua derrota cotidiana na luta contra o obscurantismo contemporâneo, ao confundirem a tranquilidade relativa que reina nas torres de marfim acadêmicas com o estado real do campo de batalha das ideias democráticas... Naquelas torres, a razão institucional reina; deste campo de batalha, a razão desertou, e vem tentando disfarçar tal deserção, fazendo-a de soberba racional; ora, a meu parecer, a inaptidão da filosofia de hoje a proferir algum discurso sobre a felicidade não remete a um diagnóstico, e sim a um sintoma: seu isolamento solipsista, sua derrota social. Aqui, tratar-se-á de tentar resgatar o valor filosófico da felicidade; primeiro, salientando que durante 2.000 anos, tanto no contexto antigo (eudemonismo grego-romano) quanto no contexto medieval (providencialismo), a reflexão filosófica nutriu um interesse primordial por tal temática; segundo, recordando que, longe de desaparecer do horizonte da modernidade, a felicidade tem sido o alicerce, amiúde despercebido, porém, constante e estruturante, dos projetos filosófico-políticos elaborados desde o séc.XVII (contratualismo, liberalismo, utilitarismo, socialismo, etc.); enfim, mostrando que nossa postura contemporânea no que diz respeito à felicidade, i.e., à "timidez" que sentimos diante desse tema, repete a postura de outras épocas do pensamento, marcadas por incertezas e inquietudes mui semelhantes às nossas.

Cabe perguntar: e se ensinar a felicidade, em vez de ser um projeto tipicamente utópico e/ou autoritário, fosse o último recurso que nos resta neste nosso período em que os interesses da razão e os interesses humanos aparentam ter definitivamente divorciado? 


Baptiste Grasset (UNIRIO)