segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Felicidade se determina?



A felicidade, como pressuposto da existência do homem e finalidade do Estado, antevista por Aristóteles nas linhas preliminares da Política, adquire especial dimensão no ambiente do movimento constitucionalista decorrente do ideário e das revoluções liberais burguesas dos séculos XVII/XVIII, que antecederam ao processo de consolidação do Estado de Direito.

O projeto de construção de um novo modelo de organização da sociedade e do Estado, em oposição ao absolutismo estatal e fundada em valores do individualismo liberal, tendo por alicerce a liberdade e a igualdade jurídica formais, é enriquecido pela incorporação das reflexões sobre a busca da felicidade nos debates filosófico- jurídicos do período.
Em simultâneo, entendida como princípio e direito fundamental da pessoa humana, as construções teóricas do período são reavivadas por John Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, numa concepção antecipatória do direito do ser humano à busca da felicidade e, como tal, objeto de (futura) tutela estatal.

As revoluções liberais da época- Revolução Inglesa/ Americana /Francesa-, inspiradas nos valores libertários e igualitários reverberados por Adam Ferguson, Rousseau, Montesquieu, Siéyes, Beccaria, entre outros, e suas respectivas concepções de felicidade, tiveram por legado uma riquíssima herança documental manifesta nos textos do Bill of Rights (1689), da Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Em tais documentos, antecipatórios das primeiras constituições escritas, a concepção de felicidade, como fundamento da liberdade do homem introduzida por Locke, é estabelecida de modo expresso ou implícito e associada aos compromissos de Estado, i.e., do Estado de Direito.

A constitucionalização e enfática defesa da felicidade como direito fundamental da pessoa humana é corroborada por George Mason, Thomas Jefferson e outros nomes pilares do constitucionalismo norte- americano, na Declaração de Direitos da Virgínia, Declaração de Independência e na Constituição dos EUA de 1787 na assertiva “todos os homens são criados iguais e foram dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis , que entre estes estão  a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.

Antes, Jefferson já declarava “um direito que a Natureza conferira a todos os homens (...) de estabelecer novas sociedades, segundo leis e regulamentos que lhe parecessem mais apropriados para promover a felicidade pública”

Visível o processo de construção teórica de uma “felicidade pública”, salientada por Hannah Arendt em “A Busca da Felicidade” (cap. 3, Da Revolução), e percebida como “uma virtuosa e inabalável vinculação a uma Constituição livre”, assecuratória dos direitos civis e liberdades individuais, segundo Joseph Warren.
Impõe-se a compreensão do Estado como principal instrumento jurídico para promover a felicidade da sociedade, sobreposta à felicidade individual, “o único objetivo legítimo do bom governo, segundo Jefferson”. A busca da felicidade individual seria favorecida e objeto da inevitável tutela estatal.

São evidentes as dificuldades teóricas de se estabelecer uma margem de precisão sobre a concepção de felicidade privada/ felicidade pública, da confusão de preceitos sobre bem-estar pessoal, das distintas percepções de felicidade individual e a essência da felicidade pública preconizadas na literatura político-jurídica da modernidade européia e do século XIX

A liberdade e a felicidade como preceitos da condição humana e finalidade do Estado, inviabilizada no âmbito do absolutismo estatal em face da total ausência de garantias jurídicas do indivíduo, são contestadas no ideário marxista por seu excessivo formalismo e alheamento a realidade material de uma sociedade de classes.

A concepção de felicidade liberal burguesa é objeto de igual enfrentamento na literatura anarquista do século XIX e igualmente considerada inviável numa sociedade de classes alicerçada na glorificação do direito individual de propriedade e preeminência do Estado para a sua concretização; Kropotkin, um dos seus principais teóricos, afirma que a felicidade de cada um está individualmente ligada à felicidade dos que o rodeiam. Para Bakunin, a realização da felicidade de cada indivíduo que vive em sociedade, considerada a grande meta da humanidade e da História implica em não se deixar cair na escravizadora ficção do bem comum representada pelo Estado.

Esvaziado nas sociedades contemporâneas, o debate sobre a essência da felicidade encontra ressonância jurídica com o movimento de positivação do direito à busca da felicidade, presente em variados  ordenamentos constitucionais.As  Constituições  da França, Japão, Butão e Coréia do Sul  são representativas de alguns ordenamentos constitucionais que, de modo expresso, reconhecem o direito constitucional à busca da felicidade .

No âmbito do Estado Democrático de Direito brasileiro, é objeto de atenção, polêmicas e eventual descrédito o atual processo legislativo da Proposta de Emenda à Constituição  ( PEC)  nª 19/2010,  pleiteada pelo Senador Cristóvão Buarque.  Tal proposta altera o artigo 6º da vigente Constituição Federal “para incluir o direito à busca da Felicidade por cada indivíduo e pela sociedade, mediante a dotação pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício desse direito”, conhecida como PEC da Felicidade.

Nosso objetivo é amadurecer esses apontamentos sobre a felicidade, como propósito da existência humana e das construções teóricas sobre a possibilidade de sua determinação (?) pelo Estado uma perspectiva político-jurídica.



Magna Corrêa de Lima Duarte (Socióloga, advogada e professora UCM/UNESA)








Nenhum comentário:

Postar um comentário