Existe uma grande dificuldade
em reconhecermos e abordarmos as imagens de felicidade, ou melhor, de busca de
felicidade na literatura de forma geral. Embora a arte não tenha abandonado o
tema, raras obras de pesquisa acadêmica se arriscaram em torno de sua discussão.
O fato é que, ao longo dos últimos dois séculos, assiste-se a um processo de
desvalorização do debate no campo das ciências artísticas, inversamente
proporcional a uma valorização crescente do tema nas demais áreas da sociedade,
como a comunicação, o marketing, além de outras áreas que vem crescendo,
justamente, com estudos voltados para a investigação da importância da
felicidade na sociedade, como a neurociência e a economia.
O século XIX, de Hegel e Schopenhauer, vai desprezar a felicidade, fazendo dela uma imagem essencialmente negativa. Sabemos, também, que boa parte do coro dos grandes poetas e artistas do século XIX e XX cantou a melancolia, o pessimismo e o tédio, reforçando a concepção de felicidade como apanágio de uma burguesia cada vez mais ciosa de seus pequenos e mesquinhos prazeres privados, associando a preocupação com a felicidade ao egoísmo, aos espíritos terra a terra e à burrice.
Não resta dúvida de que o século XX foi o das grandes frustrações em tentativas de instauração de felicidade de Estado, fundadas no igualitarismo, em várias partes do mundo. Maio de 68 marcou o grande fracasso da felicidade baseada no desenvolvimento econômico. Nos anos 1980, o “Mercado da felicidade” se concretizou como um dos maiores setores econômicos; a temática virou uma obrigação, que tomou de forma avassaladora a sociedade, num modelo neoliberal, em que os tristes, os depressivos, os melancólicos foram cada vez mais excluídos, assim com os loucos, os velhos e todos que pudessem perturbar a sociedade do “seja feliz, mostre-se um vencedor”.
Compreende-se que, na atualidade, para muitos intelectuais, cresça o ceticismo em relação a um enfoque da felicidade, em qualquer instância, como tema de estudos literários e artísticos, e que a questão acadêmica “maior” se transforme em: como sobreviver ao que o filósofo Pascal Bruckner chama de “despotismo da felicidade”, responsável, segundo ele, pela destruição da própria possibilidade de felicidade?
Como vemos, a abordagem do assunto envolve navegação em águas arriscadas. Se não há muitos escritores contemporâneos que se aventuram numa tematização clara e frontal do tema, isso não significa, que ele tenha desaparecido ou perdido importância. Sua retração e o seu sequestro pelas áreas das ciências, ditas exatas, também é um sintoma que merece ser discutido. Afinal, como nos ensina G. Minois, a ideia de felicidade revela valores sociais num momento preciso da história.
Interessa-me pensar a questão nas literaturas de língua portuguesa, evidenciando alguns caminhos que tenho explorado nos últimos anos, dentre os quais destaco: em que medida o tema é relevante para as literaturas africanas de L. P.? Que figurações do tema tem sobressaído nas obras estudadas? É possível traçar um diálogo entre as demais literaturas de língua portuguesa, relevando uma ideia de comunidades imaginárias?
Maria Teresa Salgado (Faculdade de Letras - UFRJ)
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